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Justiça para recomeçar

A história de quem precisou da justiça para se redescobrir

Por Joseanne Nery

 

Nos bancos da defensoria pública, ela parecia ser apenas mais uma senhora que acabara de perder os pais e que estava ali em busca dos seus direitos como filha. Porém, nas entrelinhas da conversa, entre um olhar e outro, Liduina Alcantara, de 65 anos, mostrou que escondia uma frágil garota, cheia de marcas, presa a memórias e com uma vontade enorme de recomeçar. 

 

Dona de casa, Liduina é pensionista e mora em Fortaleza. Há poucos anos, o pai morreu de câncer e, recentemente, a mãe morreu com alzheimer. Os seis irmãos moram em outro Estado. Liduina se viu completamente sozinha quando seus pais faleceram, a não ser pela companhia dos três filhos. Ao iniciar a conversa, revelou que estava ali para fazer o inventário, que é o detalhamento do patrimônio de pessoa falecida para que seja feita a partilha dos bens.

 

Conforme ia contando sobre a vida, a conversa tomou novos rumos. Entre falas trêmulas e curtas, Liduina deixa escapar que se considerava uma pessoa nervosa demais para cuidar da saúde da mãe. Nervosismo este desencadeado por uma história de 27 anos com o ex-marido. Não é uma história agradável de contar, mas o final se assemelha a uma situação que outras cinco mil mulheres cearenses vivem, segundo dados da Secretaria de Saúde do Estado do Ceará: a violência doméstica. 

 

"Eu era tipo como se fosse uma escrava dele", disse depois de descrever que o ex-marido não a deixava estudar, trabalhar e nem ter amigos. Liduina vivia em um relacionamento abusivo. À medida que ia explicando o que aconteceu, a dona de casa apontava para algumas partes do corpo, mostrando as marcas deixadas pelas agressões físicas feitas pelo ex-marido. Questionada pelo tempo que passou para tomar alguma posição judicial, Liduina responde: "Ele me ameaçava de morte, dizia que ia me matar, se eu denunciasse. Eu tinha muito medo", confessa. 

 

O sofrimento chegava a ser maior, porque era um sentimento quieto, calado, reprimido pela insegurança e pelo temor de acontecer algo mais grave. Liduina comenta que nunca falou nada para os pais e filhos, mesmo quando aparecia com marcas pelo corpo. Muito além do medo, a dona de casa não queria ver os familiares sofrendo a sua dor. 

 

Foi na Rua Manuelito Moreira, no bairro Benfica, em 1995, que Liduina deu o primeiro passo para reconstruir sua vida. Mesmo sem saber quais procedimentos tomar, foi à Delegacia da Mulher e desenlaçou os 27 anos de relacionamento abusivo. No meio de tantas revelações, Liduina revela que a fé foi o que lhe deu forças para se desprender. "Eu não tinha coragem de fazer nada com ele e nem de denunciar, porque tinha medo dele me matar. Até hoje eu não sei o que aconteceu, eu acho que foi Deus que pensou que eu tinha que sair dessa, se não eu ia morrer e ainda tinha muita vida pela frente", relembra com a voz trêmula.

 

Hoje, a dona de casa ainda trava mais uma grande batalha na justiça. Segundo Liduina, há poucos meses voltou na defensoria pública, porque o ex-marido disse não ter mais condições de pagar a pensão.  Sem receber dinheiro há cinco meses, ela ressalta que o sistema de justiça ainda é burocrático e demorado, o que dificulta o acesso. Agora Liduina segue para o Fórum para ir, mais uma vez, em busca dos direitos de uma mulher que está conhecendo o mundo outra vez. Apesar de ter passado por uma fase de muita depressão, ela faz questão de ressaltar que está recomeçando a vida e enxergando o mundo com outros olhos. 

 

As marcas dos 27 anos de um relacionamento abusivo fizeram com que Liduina refletisse e tirasse uma grande lição disso tudo, ela percebeu que as mulheres devem transformar o medo em coragem para buscar seus direitos. "Eu acho que as mulheres que passam por isso não podem ter medo, não devem ter medo. Tem que procurar uma delegacia, tem que denunciar, porque é um sofrimento muito grande".

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